quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Diário de um Latino - americano




Ao retornar de viagem, vinte e cinco dias pela Bolívia, Peru e Brasil Central, definitivamente, algo mudou em mim. Passado mais de um mês de minha chegada, aos poucos, no dia-a-dia, sinto os reflexos do que experimentei por lá. Meus sentidos estão mais atentos ao essencial.

Comigo vieram muitas fotos e as ruínas da cidade inca de Machu Picchu foram as mais comentadas. Todos queriam saber da minha emoção, se senti algo transcendental. Disse que é difícil de acreditar que aquilo é obra de seres humanos, considerando a data de construção, a precisão dos entalhes nas rochas e encaixes, a capacidade de conceber algo arquitetonicamente tão preciso e esteticamente tão admirável. Tudo cravado em meio a montanhas que até hoje são de difícil acesso.

Lá encontrei um canto sossegado e enquanto observava milhares de turistas, formigas coloridas circulando por um labirinto de pedras, pude elevar meu pensamento e agradecer por estar alí !

E o sentimento que experimentei foi de indignação. Pensar que civilização tão avançada, cuja cultura inspira estudiosos, artistas, historiadores e escritores de todo o mundo, foi dizimada pela ganância dos espanhóis, estúpidos conquistadores !

Indignação. Minha companheira de viagem pela américa do sul. Um peso extra que insistia sobre minha consciência. A cada cidade, em cada rua, dentro dos mercados, feiras-livre, praças e becos, lá estavam, os herdeiros da miséria e do descaso, o povo.

Foi nesse contato diário que busquei a emoção para fazer as melhores imagens. As fotos das quais me orgulho e que contam uma estória de superação e aceitação sem revolta dos sofrimentos da existência.

Transcedência ? Experimentei sim. Eu não estava em nenhum sítio arqueológico. Era um deserto de sal, o UYUNI, estava diante de três crianças e a estória começou assim... (Leia "Las chicas")

"Las Chicas"


Depois de horas viajando por um salar (UYUNI), maravilhado com a paisagem, desidratado e louco por um banho, desembarcarmos em um original hotel de sal ! Enquanto pego minhas mochilas, ouço as gargalhadas de duas meninas, a mais jovem aparentava ter 6 anos, enquanto a mais velha cerca de 8 anos. Devidamente acomodado em um quarto muito simples. Voltei para a entrada do hotel para fazer fotos e curtir o fim de tarde com vista para o deserto. Sem que eu percebesse a aproximação, a menininha de 6 anos abraça a minha cintura e pede para que eu gire com ela no ar.

Vou abrir um parênteses aqui... ( Fico desconfortável nestas situações, pois não tenho o menor jeito com crianças... leia PATERNIDADE e entenderá !), enfim, peguei-a pelos braços e girei... girei... girei... até ficar tonto, quase a ponto de cair com ela, então parei. A menina estava morrendo de rir, chamou a amiga de 8 anos para a brincadeira e eu, quase vomitando !

"No chicas, no quiero más..." Corri para meu quarto e por lá fiquei. Vinte minutos depois, não ouvia mais os gritos das duas, resolvi voltar para a porta do hotel, para fazer o que não fiz : Curtir o fim de tarde diante do deserto.

Pude ouvir um cachorrinho latindo para uma menina ainda mais jovem, uns 4 anos. Distraído com aquela brincadeira, a mais velha toca minha mão e diz o nome do cachorro. As outras duas meninas se aproximam e começamos uma conversa. Todas queriam atenção ao mesmo tempo e antes que fosse tomado por aquele desconforto, pensei :

Relaxa meu camarada ! Essa viagem tem proporcionado situações que testam sua capacidade de rever condutas. Se permita ! Interaja com elas, abaixe a guarda !

Foi o que fiz. E naquele fim de tarde, já frio e com uma ventania carregando muita poeira, a mais velha pergunta se quero conhecer a igreja. Quase propus um esconde-esconde pra sumir de vez ! Rs. Aceitei. E as 3 meninas me conduzem, duas pelas mãos e a pequenina presa à minha cintura, pelas ruas esburacadas da pequena vila atrás do hotel.

Parecia que eu estava em uma espécie de sonho. Aqueles casebres de sal, o barulho do vento e dos nossos passos no cascalho da rua. Eu conduzido por crianças em direção a uma igreja !
Difícil de acreditar, mas era real e melhor, eu me divertia com tudo aquilo. Dobramos uma esquina e lá estava, La Iglesia. Humilde, pequena, quase uma ruína. Fui tomado pelo silêncio. Todos nós. Logo a mais velha disse para voltarmos e eu, que queria continuar alí por mais um tempo, contei a elas que ia rezar para minha mãe.

Vamos rezar ? Perguntei...

Busquei na memória a AVE MARIA em espanhol... não me lembrava, foi então que iniciei um Pai Nosso :

Padre nuestro que estás em los cielos...

E para minha surpresa e profunda emoção, as três meninas, de mãos postas e olhos fechados continuam a prece


Sea tu nombre santificado
venga tu reino
Sea hecha tu voluntad, como en el cielo
así también en la tierra.
El pan nuestro de cada dia, danoslo hoy
y perdóanos nuestras deudas,
como tabién nosotros perdonamos a nuestros deudeores,
y no nos meta en tentación, mas libranos de malo


Eu não terminei a oração. Chorei, de forma contida para que não percebessem. Abriram os olhos e os sorrisos. Bochechas vermelhinhas, os cabelos negros balançando na ventania, curiosas com as lágrimas que rapidamente enxuguei. Vamos embora ? Gritei. E disparo com duas delas presas por minhas mãos, enquanto a pequenina corria atrás pedindo colo. Diminuí a velocidade para que ela pegasse minha blusa. Foi assim, voltamos correndo, brincando. Me despedi e naquela noite, no jantar, levei a máquina para fazer uma foto das "Chicas". Apenas a mais velha apareceu e muito carinhosa, fez pose. Não vi as outras duas mais. Deixei o hotel na madrugada do dia seguinte.

No meu retorno ao Brasil, ao baixar as fotos do Salar, uma tristeza. A maioria dos arquivos estavam danificados. A foto da garotinha que me convidou à igreja, também (Imagem acima )

Não importa. Essa foi minha experiência transcendental. Três anjos, encarnados em crianças, dispostos a converter um homem, pela pureza da fé e do amor !